Nossa vida, quer dizer, nossas experiências (aquilo que necessitamos,
queremos e sentimos) são importantes em nossa formação espiritual. Afinal, são
exatamente o material que está sendo formado. No entanto, nossas experiências
não podem ser usadas como diretrizes da própria formação. Entre outras coisas,
espiritualidade significa levarmos nós mesmos a sério. Significa ir contra as
tendências culturais nas quais somos incessantemente banalizados e levados à
condição de escravos dos produtores e anunciantes, constantemente
despersonalizados e rotulados de acordo com nossos diplomas e
salários. Entretanto, somos muito mais do que nossa utilidade ou
reputação, de onde viemos e a quem conhecemos; nós somos a imagem de Deus
única, eterna e impossível de ser reproduzida. Uma vigorosa afirmação da
dignidade pessoal é fundamental para a espiritualidade.
Há um senso segundo o qual jamais devemos nos levar a sério demais. No
entanto, somos assunto sério. Fomos formados de "modo assombrosamente
maravilhoso" (Salmo 139.14). Entretanto, é possível encararmos a nós
mesmos de forma estreita demais, mas somos muito mais do que genes e hormônios,
emoções e aspirações, empregos e ideais; acima de tudo, há Deus. Grande parte,
se não tudo, do que e quem somos tem a ver com Deus. Se tentarmos entender e
formar a nós mesmos pelos nossos próprios meios, perderemos a maior parte do
nosso ser.
Assim, a comunidade cristã sempre insistiu em que as Escrituras
Sagradas, que revelam os caminhos de Deus para nós, são necessárias e básicas
para nossa formação como seres humanos. Ao lermos a Bíblia, chegamos à
conclusão de que o que precisamos não é primariamente informação, algo que nos
diga coisas acerca de Deus e de nós mesmos, mas de formação, que nos modele em
nosso verdadeiro ser.
A própria natureza da linguagem forma muito mais do que informa. Quando
a linguagem é pessoal, que é a sua melhor forma, ela revela; e a revelação é
sempre formativa — não sabemos mais, mas nos tornamos mais. Aqueles que melhor
utilizam a linguagem, os poetas, os apaixonados, as crianças e os santos, usam
as palavras para fazer — fazer declarações, fazer caráter, fazer coisas belas,
fazer bondade, fazer verdade.
...
No último livro que escreveu, C. S. Lewis falou sobre dois tipos de
leitura: a leitura na qual usamos o livro para nossos próprios propósitos e a
leitura na qual nós recebemos os propósitos do autor. A primeira garante
somente uma má leitura; a segunda acena para a possibilidade de uma boa
leitura:
Quando "recebemos", exercitamos nossos sentidos e imaginação,
bem como várias outras faculdades de acordo com um padrão criado pelo autor.
Quando "usamos", tratamos a leitura como uma assistente para as
nossas próprias atividades... "Usar" é inferior a
"recepção" porque a arte, quando usada em vez de recebida, meramente
facilita, ilumina, alivia ou serve de paliativo para nossa vida, sem acrescentar
nada a ela.(1)
Você percebe por que estou insistindo que uma conscientização do que a
Igreja formulou acerca da Trindade Santa é tão importante quando nos
aproximamos desse Livro, a Bíblia? Nós a lemos a fim de receber a revelação de
Deus, que é extremamente pessoal; lemos a Bíblia da forma que ela chega a nós,
e não da forma que nós chegamos a ela; nós nos submetemos às várias operações
complementares do Deus Pai, do Deus Filho e do Deus Espírito Santo: recebemos
essas palavras a fim de sermos formados agora e para a eternidade, para a
glória de Deus.
...
"Coma este livro" é a metáfora escolhida por nós para focar a
atenção naquilo que envolve a leitura de nossas Sagradas Escrituras de maneira
formativa; quer dizer, lê-las de tal forma, que o Espírito Santo as use para
formar Cristo em nós. Não estamos interessados em saber mais, mas sim em sermos
mais transformados.
Estou colocando um crescente senso de urgência sobre esta questão porque
já ficou claro que nós vivemos numa época na qual a autoridade das Escrituras em
nossas vidas tem sido substituída pela autoridade do ser: somos encorajados de
todos os lados a assumir o controle de nossas vidas e a usar nossa própria
experiência como o texto autoritativo pelo qual vivermos.
O elemento alarmante para mim é que esse espírito invadiu as igrejas
evangélicas. Num grau maior ou menor, espero ver o mundo exterior tentando
viver de forma independente. Mas não aqueles que confessam a Jesus como Senhor
e Salvador. Eu não sou o único a advertir que estamos numa posição delicada e
embaraçosa por sermos a Igreja que crê ardentemente na autoridade da Bíblia,
mas, em vez de submeter-se a ela, apenas a usa, aplica e controla, usando a
própria experiência como autoridade que determina como, onde e quando a
usaremos.
Meu propósito é conter essa soberania do ser reafirmando o que significa
viver essas Escrituras a partir do interior, em vez de usá-las para nossos
propósitos sinceros e devotos, mas mesmo assim gerados pela soberania do ser.
(1) C. S. Lewis, An Experiment in Criticism [Experimento em
crítica] (Cambridge: Cambridge University Press, 1961) p. 88. Lewis também
ofereceu esta ilustração: "Um [que recebe] é como alguém que é levado para
um passeio de bicicleta por um homem que conhece estradas que ele jamais
explorou. O outro (que usa) é como alguém que instala um pequeno motor em sua
própria bicicleta e então anda por uma estrada que já conhece".
Extraído do livro Peterson, Eugene. Coma este Livro: a comunidade santa
à mesa com as Sagradas Escrituras. Niterói, RJ: Textus, 2004.