terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Os buscadores e as buscadoras de Deus (VIII)

Os buscadores e as buscadoras de Deus procuraram e encontraram a Deus, cada qual em seu próprio contexto de vida. 

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Dag Hammarskjoeld (1905-1961). Praticamente, nenhuma das pessoas que conhecia o secretário-geral da Nações Unidas, promotor da paz, sabia de sua espiritualidade e de suas experiências místicas. Suas anotações em um diário só foram conhecidas e publicadas depois da inexplicável queda mortal do avião em que viajava sobre o Congo. Nelas, deparamo-nos com uma pessoa buscadora e esforçada, que não lê apenas os escritos dos místicos, mas que busca traduzi-los concretamente na própria vida como político. Repetidas vezes ele fala de quão importante é libertar-se do ego que em todo fazer se imiscui (1). Essa liberdade de erguer-se e desvencilhar-se de tudo - o mistério da cruz e da ressurreição de Jesus - Hammarskjoeld concretizou em sua vida. Foi uma longa peleja até que ele, em seu engajamento político, ficasse livre de todo interesse próprio e se colocasse completa e inteiramente a serviço de Deus. Para isso, ele compreendeu a Paixão de Jesus como a chave também para sua própria vida. O político e místico ensina-nos, em meio a nosso empenho terreno pelas pessoas, a descobrir o mistério do amor de Jesus Cristo a tornar-nos livres do próprio ego em nosso engajamento político e ou social. Assim da mesma forma como Dag, seremos uma bênção para o mundo.

Seu  diário, que continha uma coleção de apontamentos pessoais em  forma de aforismos (2), breves esquemas, versos e citações,  apareceu em Estocolmo, em 1963, foi traduzido em diversas línguas. Ele viveu a partir de um "sim" interior a Cristo e buscou o caminho que conduz à perfeição.

Tempo para Deus
Como queres conservar a capacidade de ouvir, quando jamais escutas: que Deus deva ter tempo para ti, consideras igualmente natural como o fato de que não possas ter tempo para Deus.

Oração
As exigências vitais do bicho-homem não se transformam em oração pelo fato de ele estar orientado para Deus.

Morrer
Deus não morrerá no dia em que já não acreditarmos em sua divindade pessoal, mas morreremos no dia em que a vida, para nós, já não for iluminada pelo constantemente doado brilho do milagre, da fonte de luz que ultrapassa toda razão.

Amar a Deus
Não basta colocar-se diariamente sob Deus. Trata-se de ficar unicamente sob Deus: cada fragmentação abre a porta para o devaneio, a fofoca, o autoelogio, a calúnia - todos esses resíduos de satélites do impulso destrutivo.
"Como devo, porém, amar a Deus"? - "Deves amá-lo como se Ele fosse um não deus, um não espírito, uma não pessoa, uma não figura: antes, apenas mera, pura, clara unidade,longe de toda dualidade. E neste uno, devemos afundar-nos eternamente do ser  ao nada. Para isso, ajude-nos Deus".

1952
"Seja feita a tua vontade". - Deixa de entregar-te ao ímpeto de pequenas tentativas de manipular o destino, a partir do teu próprio interesse; deixa também de te queixares dos outros com uma hipoteca da mais nobre ideia na fé - caso tu te deixes guiar unicamente por tua cabeça, o que aparece no fim disso tudo.
"Seja feita a tua vontade". - Deixa que o interior tenha prioridade diante do exterior, a alma diante do mundo - não importa aonde conduza. No entanto, não deixes que o valor interior se transforme em máscara para o exterior, mas que se faça cego  para o valor que um interior possa ter para o exterior.


"Fé - não vacilar", mas também: não duvidar. "A fé é a união de Deus com a ama" - sim, mas nisso também a certeza do poder de Deus pela alma: para Deus, tudo é possível, pois a fé pode mover montanhas.

Oração
Tu, que estás acima de nós,
Tu, que és um de nós,
Tu, que estás - 
também em nós;
que todos te vejam - também em mim,
que eu libere o caminho para ti,
que eu agradeça por tudo o que me aconteceu.
Que, ao fazer isso, não me esqueça dos outros necessitados.
Conserva-me em teu amor,
Tal como queres que outros permaneçam no meu.
Que tudo, neste meu ser, se volte para tua honra,
e que eu não desespere jamais.
Pois estou sob tua mão,
e toda força e bondade estão em ti.
Concede-me um espírito puro - para que te contemple,
um espírito humilde - para que te escute,
um espírito amável - para que te sirva, um espírito de fé - para que permaneça em ti.

(1) Imiscui: Faz ou diz algo relativamente a alguma coisa ou a alguém que não lhe diz respeito (interfere, intromete-se, mete-se); misturaliga. 
(2) Aforismo: é um texto breve que enuncia uma regra, um pensamento, um princípio ou uma advertência; traz um fundamento que, numa sentença filosófica, pode denotar um pensamento de teor prático ou moral.

Extraído de Grün, Anselm. O encontro com Deus: experiências de fé de grandes nomes da História. 2. ed. Petrópolis, RJ : Vozes, 2014. p. 28-29 , 203-214.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Os buscadores e as buscadoras de Deus (VII)

Os buscadores e as buscadoras de Deus procuraram e encontraram a Deus, cada qual em seu próprio contexto de vida. Eles apresentam diversas situações a partir das quais o ser humano é interpelado por Deus.

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Paul Claudel (1868-1955), cresceu em um mundo no qual imperava o ceticismo. Somente a matéria tinha valor. Cada artista ou literato era livre-pensador. Desprezavam a fé e se posicionavam hostilmente contra a Igreja. A ciência explicava a fé como retrógrada. Paul Claudel, como jovem, seguiu o espírito do tempo. Contudo, as leituras de livros de Arthur Rimbaud fez brotar uma centelha de transcendência em sua vida, o que ele descreveu como um estado de atordoamento e de desespero. Em meio a esses sentimentos, ele foi participar da grande missa de Natal no dia 25 de dezembro de 1886, não por interesse religioso, mas para obter estímulos para sua ocupação como escritor... durante a tarde, ele foi novamente para as Vésperas de Natal na Igreja Notre Dame de Paris. Quando o coral de meninos entoou o Magnificat, seu coração foi trespassado e ele acreditou, de um momento para o outro. No centro dessa fé encontrava-se a experiência da eterna filiação de Deus e o sentimento de inocência. O amor de Deus envolveu-o e modificou-lhe a vida. Ele já não se sentia atordoado e desesperado, mas amado e acolhido por Deus... Precisou de muitos anos até que chegasse a harmonizar seu coração e sua mente. Existem sempre outros caminhos nos quais Deus nos toca o coração. Para uns, é a Palavra de Deus; para outros, um canto ou o desenrolar-se da liturgia, a atmosfera de um culto que os tocam e deixam penetrar em seus corações a certeza de que esses ritos não caem no vazio. É conhecido como representante da "renovação católica", do movimento de renovação francês. Sua obra poética vive do catolicismo.

 Minha conversão
Minha conversão deu-se no dia 25 de dezembro de 1886. Embora eu proviesse, de ambos os lados, de uma linhagem de pessoas que acreditavam, que providenciaram para a Igreja uma série de sacerdotes, minha família era indiferente  quanto à religião e, desde nossa mudança para Paris, mostrava-se absolutamente insensível a tudo o que dizia respeito à fé.
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Aos dezoito anos, portanto, eu acreditava no que a maioria das pessoas pretensamente instruídas daquele tempo acreditava. A grande ideia do individualismo e da verdade encarnada havia-se enfraquecido em mim... eu levava uma vida imoral e caía gradualmente em uma situação de desespero. A morte de meu avô, a quem vi languescer por meses a fio, devido a um câncer de estômago, infundiu-me um profundo medo; a partir de então, a ideia da morte já não me abandonou.
Tudo o que dizia respeito à religião, eu havia esquecido completamente, e a este respeito eu achava-me na situação da ignorância de um selvagem. Uma primeira réstia da verdade penetrou-me pelo contato com os livros de um grande poeta - Arthur Rimbaud. 
...encontrava-se na Igreja de Notre Dame de Paris, para ali acompanhar a Grande Missa do Natal... A seguir, visto que não tinha nada melhor a fazer, voltei para as Vésperas... Eis que aconteceu o fato que deveria ser determinante para toda a minha vida. Em um instante, meu coração foi aferrado, eu acreditei. Eu acreditei com um assentimento interior tão vigoroso, todo o meu ser foi imediatamente convulsionado com violência, acreditei com tão forte convicção, com certeza tão indescritível, que não sobrou nenhum espaço para a menor dúvida, que a partir desse dia, todos os livros, todos os raciocínios, todas as vicissitudes de uma vida agitada não conseguiram abalar minha fé, nem sequer tocá-la. [...] É verdade! Deus existe, Ele está aí. É alguém, é um ser tão pessoal quanto eu! Ele me ama, Ele me chama. Lágrimas e soluços dominaram-me... O edifício de minhas opiniões e conhecimentos não desmoronou; não descobri nele nenhuma falha. Apenas uma coisa aconteceu: eu fui retirado dele! Um novo e poderoso ser se revelara, com desafios terríveis, ao jovem ser humano e artista que eu era; no entanto, eu não entendia como harmonizá-lo com o que quer que fosse daquilo que me rodeava.
... Essa resistência durou longos quatro anos... Foi a grande crise de minha vida, aquela peleja espiritual de vida ou de morte, sobre a qual Rimbaud havia escrito: o combate espiritual é igualmente tão brutal quanto a luta dos seres humanos. Dura noite! 
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E, ainda na noite daquele memorável dia em Notre Dame, depois que eu voltara para casa, pelas ruas molhadas de chuva, que agora me pareciam completamente estranhas, eu havia tomado de uma Bíblia protestante que uma família alemã tinha dado anteriormente à minha irmã Camille, e pela primeira vez percebi o som daquela voz suave, porém, inquebrantável, que desde então incessantemente ecoa em meu coração.

A fissura e a liberdade
Mas, por que Deus deu, pois, esta liberdade ao ser humano, quando Ele, no entanto, previa que cada um faria mau uso dela?
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Em cada ser, Ele colocou uma força que corresponde à sua natureza e é necessária para sua eficácia.
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Quem está submetido a uma ordem não é livre; quem optou por ficar sob todas as ordens possíveis outra coisa não pode ser senão livre, pois sua escolha já não é determinada pela necessidade, mas por um comprazimento racional no melhor.

“Deus é Aquele que, em mim, é mais eu do que eu mesmo.”




Extraído de Grün, Anselm. O encontro com Deus: experiências de fé de grandes nomes da História. 2. ed. Petrópolis, RJ : Vozes, 2014. p. 22-24, 139-146.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Os buscadores e as buscadoras de Deus (VI)

Os buscadores e as buscadoras de Deus procuraram e encontraram a Deus, cada qual em seu próprio contexto de vida. Eles apresentam diversas situações a partir das quais o ser humano é interpelado por Deus.

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Charles de Foucauld (1858-1916). Seu itinerário de fé corresponde ao de muitos contemporâneos. Cresceu em uma família piedosa. No entanto, aos dezesseis anos, perdeu sua fé. Na academia militar levou uma vida desregrada e dissoluta. Ainda assim, em tudo o que ele experimentava, permanecia em seu coração a lembrança da fé de seu avô, das primeiras orações da infância e das muitas visitas à igreja. Devia estar com seus vinte e oito anos quando, de repente, compreendeu que Deus existia. E se Deus existia, então ele sabia: só posso viver para Ele... A busca que ele faz de Deus não é apenas um convite a  que observemos precisamente as pessoas que acreditam, mas também um desafio a tornar-nos, nós mesmos, testemunhas da fé, menos por meio de nossas palavras do que por meio de nossa vida. Quando Cristo se torna visível aos outros pela nossa vida, então podemos tornar-nos também um convite para que outros procurem a Deus em seu próprio coração e entrem em intimidade com sua ânsia espiritual, algo que eles trazem em seu íntimo desde a infância. [Charles era muito apegado à família e aos amigos, mas sentiu-se chamado a deixar tudo para seguir a Jesus. Entre 1890-1897, ele viveu com os trapistas , primeiro na França, e depois na Síria.]

Meu Deus, se existes...
Comecei a frequentar a Igreja sem acreditar, somente ali me sentia bem e passava horas ali, enquanto repetia esta estranha oração: "Meu Deus, se existes, deixa-me conhecer-te".
... O bom Deus, que tão poderosamente havia começado a obra de minha conversão..., agora a completava... Tão logo acreditei que existe um Deus, também compreendi que eu podia viver apenas para Ele: minha vocação religiosa provém da mesma hora que minha fé.

Fé infantil, descrença, retorno à fé
Desde a minha infância, estive rodeado de tantas graças: filho de uma santa mãe que me ensinou a conhecer-te, amar-te e rezar a ti, tão logo fui capaz de compreender uma palavra! Até mesmo minha lembrança mais antiga não é, por acaso, uma oração que minha mãe me fazia recitar de manhã e à noite... sob a orientação de um sacerdote bom , piedoso, inteligente, diligente, aprendi a perseverança...
E quando eu, não obstante todas as graças, comecei a distanciar-me de ti, com que brandura Tu, pela voz de meu avô, me chamaste de volta: quão misericordiosamente impediste que caísse nos últimos abismos, à medida que conservaste em meu coração a ternura para com meu avô!... No  entanto, apesar de tudo, afastei-me - infelizmente!- , afastei-me sempre mais de ti, meu Senhor e minha Vida...  E mesmo nessa condição, Tu sempre me conservaste. Conservaste em minha alma a lembrança do passado, a estima pelo bem e - tal como um fogo que, mesmo adormecido sob as cinzas, ainda assim está presente - o carinho por determinadas almas belas e piedosas, o respeito pela religião... toda fé havia desaparecido... Eu praticava o mal, mas não concordava com ele e não o amava.
... Tu és tão bom...! E no mesmo tempo em que Tu, com amor criativo, impedias que minha alma sucumbisse irremediavelmente, conservaste meu corpo: de fato, se morresse então, teria ido para o inferno... Oh, meu Deus, quanto mantinhas tua mão sobre mim e quão pouco eu a sentia! Tu és tão bom! Como me ocultavas sob as tuas asas, ao passo que eu nem sequer acreditava em tua existência! E enquanto Tu assim me protegias, o tempo passava e Tu consideraste que era chegado o momento de reconduzir-me ao rebanho... Apesar de minha resistência, Tu desataste todas as más conexões que me mantinham longe de ti... Por inventivas maneiras, Deus de bondade, fizeste-me chegar a teu conhecimento!... Esta necessidade de solidão, de recolhimento, de leituras espirituais; esta necessidade de ir à tua igreja, eu, que não acreditava em ti: esta busca pela verdade... Tudo isso era obra tua, meu Deus, unicamente obra tua...

Oração
Devo esforçar-me por conhecer-te, meu Deus, para melhor amar-te. Quanto mais te conheço mais te amarei, pois tudo em ti é perfeito, admirável, amável. Conhecer-te um pouco melhor significa ver a beleza mais brilhante, mais transparente; significa estar fascinado pelo amor... 
Meu Deus, que estás em mim, ao meu redor; meu Senhor Jesus, meu Deus...

Um conselho
Devemos procurar deixar-nos impregnar pelo Espírito do Senhor, à medida que lemos e relemos incessantemente suas palavras e seus exemplos, contemplamos e voltamos a contemplar, a fim de que atuem em nossa alma como a gota d'água que reiteradas vezes cai sobre o mesmo lugar em um ladrilho.


Extraído de Grün, Anselm. O encontro com Deus: experiências de fé de grandes nomes da História. 2. ed. Petrópolis, RJ : Vozes, 2014. p. 20-21, 113-124 .
📷  https://www.charlesdefoucauld.org/images/bio/voyageur.jpg

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Os buscadores e as buscadoras de Deus (V)

Os buscadores e as buscadoras de Deus procuraram e encontraram a Deus, cada qual em seu próprio contexto de vida. Eles apresentam diversas situações a partir das quais o ser humano é interpelado por Deus.

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João Wesley (1703-1791), o 15º dentre os 19 filhos da família de um pastor protestante, era um diligente sacerdote anglicano. Anunciando a Palavra de Deus, navegou para a Geórgia, a fim de ali pregar aos índios. No entanto, segundo ele, tudo não passava de sinais de um "quase-cristão". Um autêntico cristão mostra-se pelo amor, pelo amor a Deus e ao próximo. Assim, Wesley esforçou-se para ser um cristão autêntico. Em meio a esse esforço, no qual ele sempre também se deparou com suas próprias dúvidas, Wesley sentiu-se tocado no coração ao ouvir o preâmbulo de Lutero à Carta de Romanos. Agora ele tinha a convicção interior de que Jesus também morreu por ele e lhe havia tirado os pecados. Agora Jesus se move para o ponto central de sua fé... Devemos confiar em que Deus toca os seres humanos a fim de mostrar-lhes que Ele é. A experiência de Deus está sempre  ligada também a uma tarefa. Quando Deus irrompe em nossa vida, não se trata apenas de uma vivência que podemos degustar.  
        

O quase cristão (pregação)

Controlei o tempo e aproveitei cada oportunidade para fazer o bem a todos. Constante e cuidadosamente, usei todos os meios da graça, pública ou reservadamente. Sempre e por toda parte, esforcei-me por uma constante seriedade de comportamento. Deus, perante quem me coloco, é minha testemunha de que fiz tudo isso com sinceridade... No entanto, minha própria consciência testemunha, no Espírito Santo, que eu, durante todo o tempo, era apenas "quase cristão".

Diário: ministério em Savannah
... então tomei consciência de que entre meu ensinamento e minha experiência havia uma ampla disparidade. Foi-me difícil não lhes dizer diretamente que minha experiência e minha razão despertaram dúvidas em relação à Bíblia.

Diário: retorno à Inglaterra
Se o Evangelho é verdadeiro, como assim o creio, então estou salvo, pois dei e dou não somente tudo o que possuo aos pobres, mas entrego a Deus também meu corpo... Creio, portanto, que o Evangelho é verdadeiro. E testemunho minha fé mediante minhas obras, à medida que me empenho completamente. E caso tivesse de escolher outra vez, optaria sempre de novo por esse caminho.
Quem me conhece, vê que eu gostaria de ser cristão. Por essa razão, meus caminhos são diferentes dos das outras pessoas. Por conseguinte, fui, sou e serei alvo do escárnio, um provérbio da vergonha. Mas, se acaso, repentinamente, sobrevém uma tempestade, logo penso: "E se o Evangelho não for mesmo verdadeiro? Então és o mais idiota dos homens."

Diário: a experiência da certeza da salvação
De repente, tive a certeza de que Ele havia tirado os meus pecados, exatamente os meus, e libertara-me da lei do pecado e da morte.
Comecei a rezar por todos aqueles que de modo especial me haviam maltratado e perseguido. Então testemunhei publicamente o que eu sentia.
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Anteriormente, eu lutava com todas as minhas forças tanto sob a Lei quanto sob a graça. Naquele tempo, porém era vencido algumas vezes, quando não frequentemente; agora eu era sempre vencedor.
No momento do meu despertar, Jesus, o Senhor, estava em meu coração e em minha boca. Toda a minha força residia em que eu dirigia meus olhos para Ele e minha alma esperava nele continuamente.

Carta a um amigo: "O mundo todo é minha paróquia"
Na fé ou no exercício do ministério, os únicos princípios de fé que aceito são os da Sagrada Escritura. Contudo, no que tange aos princípios fundamentais da Escritura, não vejo nenhuma dificuldade em justificar-me no que estou fazendo. Com efeito, Deus ordenou-me, na Escritura, de acordo com minhas forças, instruir as pessoas hostis, converter os  maus ao bem e fortalecer os virtuosos. Proíbem-me fazer isso... A quem devo, pois, obedecer, a Deus ou às pessoas?
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Sei que Deus me chamou para isso, e estou certo de que sua bênção acompanha meu trabalho. Por isso, tenho também grande coragem de executar fielmente o trabalho que Ele me impôs. Sou seu servo e, como tal, trabalho segundo suas ordens, "enquanto ainda tenho tempo de fazer o bem a todos. A providência de Deus concorda com sua Palavra que me tornou livre de tudo o mais, a fim de que eu simplesmente me atenha a isso: 'e faze o bem' ".

Extraído de Grün, Anselm. O encontro com Deus: experiências de fé de grandes nomes da História. 2. ed. Petrópolis, RJ : Vozes, 2014. p. 19-20 , 97-111.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Sobre oração

Iniciantes na oração - crianças, novos convertidos - a acham fácil. A capacidade e o impulso para orar estão ambos embutidos no nosso íntimo. Somos feitos, afinal, por Deus, para Deus. Por que não oramos? Ela é a nossa língua nativa, nossa primeira língua. Vemo-nos em terrível dificuldade e clamamos a Deus por ajuda. Descobrimo-nos imensamente abençoados e damos graças a Deus. "Socorro!" e "Obrigado!" são nossas orações básicas. Monossilábicas. Simples.

Deus fala conosco, nos chama, tem misericórdia de nós, nos ama, desce sobre nós, entra em nós. E respondemos, reagimos, aceitamos, replicamos, louvamos. Em uma palavra, oramos. Simples assim. O que mais dizer? 

A oração, no entanto, não permanece simples. Passamos anos trabalhando arduamente em um deserto de provas e começamos a questionar as simplicidades infantis com as quais começamos. Vemo-nos imersos em uma geração cínica que corrói nossa inocência primitiva com desdém e dúvida. Ao longo do caminho apanhamos noções de oração mágica e começamos a trabalhar rituais ilusionistas e feitiçarias verbais que tornam a vida mais fácil. Não demora até que essas simplificações primitivas estejam todas enroladas em nós de perguntas, dúvidas e superstições.

Isso acontece a todos nós. Todos os que oram acabam em uma dificuldade ou outra. Precisamos de ajuda. Precisamos de um teólogo, pois para os que oram e desejam continuar orando, um teólogo é nosso indispensável  e melhor amigo.

A razão pela qual, nós que oramos, precisamos de um teólogo ao nosso lado é que grande parte de nossas dificuldade em oração é criada por nós mesmos, por amigos bem-intencionados, ou por mentiras do diabo, que sempre parece estar cuidando de nossos interesses próprios. Ficamos mais interessados em nós mesmos que em Deus. Ficamos absorvidos no que está ou não acontecendo em nós. ficamos desnorteados pelas enormes discrepâncias entre os nossos sentimentos e as nossas intenções; ficamos indecisos diante das acusações moralistas que questionam nosso valor até mesmo para iniciar uma oração; ficamos atraídos pelas propagandas de segredos que nos darão acesso a uma elite privilegiada, espiritual.


No entanto, a oração tem a ver primeiramente com Deus, não conosco. Ela nos inclui, certamente - tudo a nosso respeito, até o último detalhe. Mas Deus vem primeiro. E a tarefa do teólogo é treinar o nosso pensamento, a nossa imaginação, a nossa compreensão a começar com Deus, e não conosco mesmos. Isso nem sempre é reconfortante, pois queremos alguém que preste atenção em nós. No entanto, é mais importante prestar atenção em Deus. A oração, que começou simplesmente o bastante para prestar atenção em Deus, pode somente recuperar aquela simplicidade no reocupar-se de Deus. A oração é a coisa mais pessoal que fazemos, o ato mais humano no qual podemos nos engajar. Somos mais nós mesmos, mais o nosso verdadeiro eu à imagem de Deus quando oramos do que em qualquer outra ocasião. Esta é a glória da oração, e é também o seu problema, pois esses nossos eus têm uma maneira de se tornar mais interessados neles mesmos que em Deus. 
[Jesus disse:] É assim que eu quero que vocês façam: encontrem um local tranquilo e isolado, de modo que não sejam tentados a interpretar diante de Deus. Apenas fiquem lá, tão simples e honestamente quanto conseguirem. Desse modo, o centro da atenção será Deus, não vocês, e vocês começarão a perceber sua graça. (1)

(1) Peterson, Eugene H. A Mensagem: Bíblia em Linguagem Contemporânea. São Paulo: Editora Vida, 2011. Mateus 6:6. 


Extraído de Peterson, Eugene. Um ano com Eugene Peterson: meditações diárias para uma vida centrada em Deus. Brasília, DF: Palavra, 2008, p. 311-313.

sábado, 30 de novembro de 2019

Os buscadores e as buscadoras de Deus (IV)

Os buscadores e as buscadoras de Deus procuraram e encontraram a Deus, cada qual em seu próprio contexto de vida. Eles apresentam diversas situações a partir das quais o ser humano é interpelado por Deus.
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Teresa de Ávila (1515-1582), foi desde cedo para o convento, mas misturava sua vida espiritual com suas carências de reconhecimento e de prazeres. Vivia no ambiente religioso, mas achava-se muito longe de si mesma e de Deus. Apesar de todos os exercícios espirituais, não experimentava nenhum sabor em Deus. Então Deus mesmo tocou-a e transformou-a... experimentou  que o próprio Deus libertou-a de seus círculos e de si mesma. Como mística, permanece com os pés firmemente no chão. Vive sua vida cotidiana, mas em tudo é conduzida à experiência do amor de Deus.

Comecei a lançar-me de um passatempo a outro, de uma vaidade a outra e de uma ocasião a outra. Por fim, caí em ocasiões tão perigosas, e minha alma estava tão soterrada em uma porção de vaidades, que eu receava, daí em diante, aproximar-me de Deus em amizade tão especial tal como ela é cultivada na oração interior. Além disso, aconteceu que, com o crescimento de meus pecados, o gosto e a alegria pelos exercícios de virtude diminuíam sempre  mais em mim. Reconheci claramente que isso aconteceu, meu Senhor, porque eu não permaneci fiel a ti. 
... longe de fingir propositadamente, era-me, antes, muito mais penoso que alguém tivesse boa opinião a meu respeito, pois eu estava muito bem consciente do que se escondia em mim perante os outros.
Levava, portanto, uma vida altamente atormentada, pois as falhas que cometi devido a essas circunstâncias, na oração agora apareciam claramente diante de meus olhos. De um lado, Deus chamava-me; de outro, eu seguia o mundo; enquanto eu experimentava grande alegria nas coisas divinas, as mundanas me aprisionavam. 
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Tão logo comecei a fugir às ocasiões e dedicar-me mais à oração, o Senhor também começou a conceder-me sua graça... tinha consciência de uma grande segurança em mim de que seria Deus que agia assim em mim. Também percebi que, por isso, melhorei muito e fui fortalecida no bem.
O mais alto grau de perfeição não consiste, evidentemente, em consolações interiores e em êxtases sublimes, tampouco em visões ou no espírito de profecia, mas unicamente em tal conformidade de nossa vontade com a vontade divina, que tudo o que reconhecermos como sua vontade abracemos com toda a nossa vontade, e que aceitemos o amargo e doloroso, quando reconhecermos que sua majestade (=Deus) assim o  quer, tão alegremente quanto o agradável.
De fato, até mesmo as maiores amarguras tornam-se doçuras para nós quando compreendemos que com isso agradamos a Deus. 
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Meu Deus... que o fogo de teu amor, portanto, consuma todas as imperfeições do amor-próprio em mim. Quero amar-te acima de toda a criação, pois és meu único tesouro e toda a minha bem-aventurança. Desejo amar-me em ti, por tua causa e para ti, e da mesma maneira também a meu próximo, levando seus fardos, assim como desejo que Ele carregue os meus. Fora de ti, quero amar apenas aquilo que me seja útil para alcançar-te.


Extraído de Grün, Anselm. O encontro com Deus: experiências de fé de grandes nomes da História. 2. ed. Petrópolis, RJ : Vozes, 2014. p. 17-18 , 75-84.
📷 Escultura de Teresa de Ávila em mármore de Carrara, de Carlo Monaldi, na Basílica de Mafra, Portugal, 1731.



 

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Os buscadores e as buscadoras de Deus (III)

Os buscadores e as buscadoras de Deus procuraram e encontraram a Deus, cada qual em seu próprio contexto de vida. Eles apresentam diversas situações a partir das quais o ser humano é interpelado por Deus.
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Martinho Lutero (1483-1546), ao longo de toda a vida, volteou o Deus misericordioso. A época de Lutero estava marcada por uma intensa sensação de culpabilidade.  Para ele, a experiência de Deus  aconteceu em meio à vida. Para ele, Jesus Cristo ressurgiu de maneira nova como aquele que lhe transmite: tu és aceito e amado incondicionalmente. Foram-te perdoadas todas as culpas. Para de culpabilizar-te. Lutero encontrou sua própria humanidade e miserabilidade. Ele redescobriu a Palavra da Sagrada Escritura como Palavra de Deus para nós, como Palavra de consolo, de estímulo, de amor e de misericórdia. A experiência que Lutero fez da misericórdia de Deus infunde-nos a coragem de assumir nossa própria indigência, sem por isso desmoronar, mas, a partir dela, contemplar a misericórdia de Deus, que nos soergue e nos faz felizes.
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Como posso satisfazer a Deus? Na condição de pecador, como posso manter-me na presença de Deus? 
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Para Lutero, contava apenas a correta interpretação do Evangelho (sola scriptura - sola fide - sola gratia - solus Christus: unicamente - por meio - da Escritura, somente por meio da fé, somente por meio da graça, tão somente Cristo).
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A justiça de Deus revela-se no Evangelho. Ele odiava justamente esta expressão "justiça de Deus", porque  fora ensinado, pelo uso e pelo costume de toda doutrina, a compreendê-la filosoficamente a partir da justiça formal ou ativa (conforme era chamada), segundo a qual Deus é justo e castiga os pecadores e injustos.
Não conseguia amar o Deus justo, castigador dos pecadores; ao contrário, chegava até mesmo a odiá-lo. Quando, como monge, vivia sem mácula, sentia-se, no entanto, pecador diante de Deus, e sua consciência muito o atormentava. E mesmo que não se insurgisse em difamações contra Deus, em segredo resmungava violentamente contra ele: como se já não bastasse que os miseráveis pecadores, eternamente perdidos mediante o pecado original, estivessem sobrecarregados pela lei do Decálogo com todo tipo de infortúnio, Deus ainda devia, pelo Evangelho, acumular lamentação sobre lamentação e, também segundo o Evangelho, ameaçar com sua justiça e sua ira?
"Eis que Deus teve misericórdia de mim"... começou a compreender a justiça de Deus como aquela pela qual o justo vive como pelo dom de Deus, isto é, a partir da fé. Toda a Escritura mostrou-lhe uma face completamente diversa. 
A única coisa que o interessa é que o Senhor envie sua graça aos seus projetos, que para Ele o oriente...


Extraído de Grün, Anselm. O encontro com Deus: experiências de fé de grandes nomes da História. 2. ed. Petrópolis, RJ : Vozes, 2014. p. 17, 61-73 .

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Os buscadores e as buscadoras de Deus (II)

Os buscadores e as buscadoras de Deus procuraram e encontraram a Deus, cada qual em seu próprio contexto de vida. Eles apresentam diversas situações a partir das quais o ser humano é interpelado por Deus.
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Gertrudes de Helfta (1256-1302), órfã, aos cinco anos de idade, foi acolhida sob custódia das monjas cistercienses (Thüringen). Recebeu, portanto, desde a infância, uma formação religiosa. No entanto, também Gertrudes foi tocada por Cristo em seu caminho. Ela foi lançada para fora dos trilhos de sua segurança religiosa e, de repente, fez uma experiência pessoal do amor de Deus. O amor de Deus tornou-se experimentável para ela no coração de Jesus. Gertrudes responde à nossa ânsia de também experimentar o que celebramos na liturgia, de fazer na liturgia a experiência mística da união com Deus, com Jesus Cristo, e de ser transformados por seu amor.
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Mediante tua graça, levaste minha alma a conhecer a mim mesma, o mais íntimo do meu coração e, desde então, a ponderar com precisão... De modo geral, tudo em meu íntimo era tão confuso, tão desordenado e caótico, que para ti, que querias ali habitar, não havia morada.
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Assim, agiste em mim, e assim despertaste minha alma... deste o começo e guiaste. E orientaste também o fim dessa reflexão para ti, pois me inspiraste: eu deveria retribuir somente a ti tua graça, transbordante com a gratidão que te era devida... eu deveria desvencilhar todos os sentidos corporais dos clamores do mundo exterior e, livre espiritualmente, existir somente para ti;  se eu assim o fizesse, então meu coração te ofereceria uma agradável moradia.
Durante todo o dia meu espírito ficou preso a esses pensamentos. À noite, antes de ir dormir, ajoelhei-me, como de costume, para a oração da noite, quando, de repente, me veio à mente aquela passagem do Evangelho de João que diz: "Se alguém me ama, guardará minha palavra e o meu Pai o amará e a ele viremos e nele estabeleceremos morada" (João 14:23).
Naquele momento, senti-me reviver em meu coração: Tu me havias chegado.
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Tu, força invencível, fizeste com que eu, um vaso de barro, tirado da terra, apesar de minha própria culpa e falha, corrompido e rejeitado, no entanto, unicamente por tua graça, fosse transformada em vaso de precioso bem.
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Tu desejas aprimorar-nos, a fim de conduzir-nos à nossa salvação.
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Agradeço-te por tua misericórdia, por tua paciência e longanimidade. Ao longo dos anos, cuidaste de mim, embora eu, desde a infância até o vigésimo quinto ano de vida, tenha vivido em cega insensatez. 
... mediante minha vida repreensível e desleixada, causei danos à tua glória, pois todas as criaturas e, portanto, eu também, devemos louvar-te e agradecer-te em cada momento. O que hoje experimento a esse respeito, comovida no mais íntimo do coração por tua graciosa simpatia, somente tu o sabes.
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Tu, verdadeira Luz, que brilhas nas trevas, não puseste um fim somente à noite de minha confusão, mas também ao dia de minha temeridade juvenil, ao ocaso de minha incerteza espiritual. Em amigável e cordial união, tornaste-me digna de teu conhecimento e de teu amor; conduziste-me para o meu íntimo - até àquela hora, este me era desconhecido. Então começaste a agir em mim, de maneira maravilhosa e cheia de mistério.
E me visitaste com frequência, em diversas horas, de várias maneiras... E daquela hora até agora, em nenhum momento estiveste longe do meu coração ou estranho a ele; eu sabia que estavas sempre presente, tão logo me voltasse para ti no meu íntimo. Agradeço-te por teres feito morada em meu coração...
Dentre todos os dons da tua graça, dois são preciosíssimos para mim: gravaste em meu coração os sinais mais dignos de veneração de tuas chagas salvíficas e o feriste para sempre com o estigma do amor. E se, além dessas graças, jamais me tivesses concedido outra consolação adicional, interior ou exterior, mediante estas duas já me fizeste infinitamente feliz; e  caso minha vida durasse mil anos, em cada hora eu seria conduzida e consolada por estes dois dons, e te agradeceria por isso em cada respiro.

Extraído de Grün, Anselm. O encontro com Deus: experiências de fé de grandes nomes da História. 2. ed. Petrópolis, RJ : Vozes, 2014. p. 16, 51-60 .

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Os buscadores e as buscadoras de Deus (I)

Os buscadores e as buscadoras de Deus procuraram e encontraram a Deus, cada qual em seu próprio contexto de vida. Eles apresentam diversas situações a partir das quais o ser humano é interpelado por Deus.
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Agostinho (354-430) é, desde a sua juventude, um buscador de Deus, alguém que procura a verdade. Contudo, ele fica fascinado, oscilando entre sua busca pela verdade, pelo que o move realmente, e sua necessidade de amor. Fica dilacerado em sua busca de Deus e em sua ânsia pela proximidade de uma mulher. Acha-se fissurado por sua carência de beleza e de cultura humanas, da maneira como as encontra no teatro romano, e por sua necessidade da beleza simples, necessidade de Deus, que preenche o profundo anelo por beleza e amor.
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Quem se junta a ti entra para a paz de seu Senhor, perderá o medo, e se sentirá o melhor possível no que há de melhor. Em minha juventude, porém, fugi de ti, meu Deus, caí no erro, longe demais de tua firmeza, e me tornei um reino de privação.
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Visto que eu ardia em paixão, busquei o objeto dessa paixão, e eu odiava um estilo de vida seguro, sem armadilhas; é que, interiormente, sentia fome de alimento interior, fome precisamente de ti, meu Deus.
... minha situação espiritual era incerta e um mar de feridas, entreguei-me ao mundo exterior, miseravelmente ansioso por encontrar alívio no contato com as coisas sensíveis.
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Meu Deus, minha misericórdia, em tua bondade, quanta intensa amargura colocavas naqueles meus gozos! 
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Na verdade, eu ainda deixava que meu coração se treinasse em retrair-se diante de toda aprovação: eu temia cair no que é duvidoso, mas esta hesitação não me privava de nada mais certo do que isso.
... encontrava-me minha alma enferma: a cura só podia chegar-lhe mediante a fé;  no entanto, a fim de não acreditar em algo falso, ela resistia à cura à medida que ela afastava de si tuas mãos, Tu, que preparaste em primeiro lugar, acima de tudo, o remédio da fé, esparramando-o em todo o mundo para as enfermidades, tendo-lhe conferido tão poderosa eficácia.
Meu Deus, agradecido quero lembrar-me de ti, confessar tua imensa misericórdia para comigo.
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Tuas palavras penetraram meu coração, e por todos os lados me sitiaste. Desapareceu toda dúvida  a respeito da existência de um ser indestrutível ou da proveniência de todo ser dele. Aquilo por que agora eu ansiava não era por maior certeza a teu respeito, mas por maior firmeza em ti.
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Agora Tu me mostravas meu rosto; eu devia ver quão horrendo eu era: deformado e sujo, cheio de máculas e de feridas. Vi-me e assustei-me, mas já nada mais existia aonde pudesse fugir de mim mesmo.
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Quando, porém, uma profunda reflexão revelou toda a miséria do fundo oculto de meu coração, expondo-a aos meus olhos interiores, desencadeou-se em mim uma imensa tempestade, com uma copiosa torrente de lágrimas.
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Então, de repente, ouço a voz da casa vizinha, como a  de uma criança, não sei bem se de um menino ou de uma menina, que em cantilena cantava e repetia: "Toma e lê, toma e lê!" Interrompi o curso das lágrimas e levantei-me, pois só podia interpretar isso como se Deus me ordenasse abrir um livro e ler a primeira passagem sobre a qual meus olhos caíssem. Por isso, afobado, apressei-me em voltar para o lugar onde deixara o livro com as Cartas de Paulo, quando me levantara. Agarrei-o, abri-o e, em silêncio, para mim mesmo, li o parágrafo sobre o qual primeiramente meus olhos caíram: "Não em orgias e bebedeiras, nem em devassidão e libertinagem, nem em rixas e ciúmes. Mas vesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis satisfazer os desejos da carne" (Romanos 13:13-14). Não queria continuar a ler: não era necessário. De fato, imediatamente, quando havia chegado ao fim da frase, a luz da certeza jorrou em meu coração: toda treva da dúvida havia desaparecido.
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Com teu amor, atravessaste nosso coração como uma flecha: carregávamos tuas palavras aonde quer que fôssemos porque elas estavam sob nossa pele. No interior de nosso pensamento, ardiam as inúmeras exemplares histórias de vida de teus servos, que tu das trevas e da morte mudaste em luz e vida: elas nos aliviaram do pesado torpor, para que não caíssemos no abismo; eles avivarão tão fortemente o fogo, que nenhum vento contrário das línguas traiçoeiras podia apagar, mas, ao contrário, reavivá-lo mais firmemente.

Extraído de Grün, Anselm. O encontro com Deus: experiências de fé de grandes nomes da História. 2. ed. Petrópolis, RJ : Vozes, 2014. p. 14-16, 35-50.