quinta-feira, 16 de julho de 2020



          O escritor de Eclesiastes se deu conta de que Deus colocou a eternidade dentro de nossos corações.(1) Agostinho observou que Deus fez o homem para Si mesmo, e que  nossos corações não encontram descanso até que descansem Nele. Esse anseio eterno forma a base da devoção.
          Somos criados com anseios infinitos. Podemos tentar ocultá-los e escondê-los atrás de valores menores tais como a apreciação pelo belo ou o desejo pela verdade e pela autenticidade. Por outro lado, podemos nos desculpar pelos ideais adolescentes, pelo otimismo incurável ou pelo romantismo indulgente conectado aos nossos anseios. Mas uma vez tendo sido despertados para o céu como uma possibilidade, nada mais trará satisfação senão conhecer mais sobre ele. Somos então como peregrinos que finalmente descobriram onde está localizado o Santo Graal. Ou talvez sejamos como crianças na escola. O mistério da matemática está diante de nós ao tentarmos entender os rudimentos da álgebra e da geometria, e temos de crer no entusiasmo do professor com o fato de que elas possuem uma beleza intrínseca.
         Mas adiante descobrimos que os desejos de Deus não são diferentes de nossos próprios desejos mais verdadeiros e íntimos. No entanto, a conexão entre eles às vezes parece terrivelmente comprometida pelo egoísmo e pela vontade própria. Refletimos e começamos a observar que a forma mais profunda de saudade – a de ser amado, ou ser compreendido, ou de estar religado ao Infinito para além de todo o universo – não é “ilusão neurótica”, de acordo com C.S. Lewis. Ao contrário, ela é “o indicador mais verdadeiro de nossa real situação”.(2)
           Em Cristo nós também descobrimos que não é a pessoalidade de Deus que é vaga e intangível. São as nossas próprias personalidades que são incoerentes, fragmentadas e inadequadas. Assim, a realidade da oração em nome de Jesus é a busca por uma personalidade mais plena e rica, a personalidade que a maioria de nós profundamente anseia ter.
         À luz disso, vemos a leitura devocional não apenas como uma opção piedosa de leitura comparada a um bom romance policial ou mesmo a uma obra séria. Ela se relaciona à natureza de um despertamento, como o que o filho pródigo teve enquanto alimentava porcos. Nossa existência animal não é boa o suficiente quando descobrimos interiormente que temos um Pai que é rei e que fomos feitos à imagem e semelhança de Deus.
          ... Nós de fato percebemos que a vida consiste em um número de despertamentos progressivos. Quando estudamos com seriedade pela primeira vez, ficamos entusiasmados com o despertamento de nossa mente para a atividade de analisar e compreender o nosso mundo. Nós despertamos de novo na experiência de assumir a responsabilidade de nossas vidas quando temos de decidir sobre atitudes e opções de importância... Mas é o despertamento para o amor de Deus que transcende todas as outras formas de consciência humana.
         ... Precisamos mais uma vez nos aquietar e ver a Deus. E então começaremos novamente a viver mais como um filho de Deus do que como um empreendedor diante dos homens.  Emoções profundas serão revividas. Memórias começarão a ser curadas. A imaginação será direcionada. E muitas e novas possibilidades se abrirão a partir dos becos sem saída das ruas, para nos mostrar paisagens de amor e alegria que nunca imaginamos poder visualizar. A esperança sucederá o desespero. A amizade substituirá a alienação. Acordaremos de manhã e descobriremos que estamos verdadeiramente livres para nos apaixonar por Deus.
            Podemos então começar a compreender aquilo que João Calvino quis dizer quando chamou a fé de um firme reconhecimento da benevolência de Deus, que está selado no coração.

   (1)  Eclesiastes 3:11
   (2)  C.S.Lewis, Peso de Glória. São Paulo, SP: Edições Vida Nova, 1993.

     


[Texto de James M. Houston. “Leitura devocional – um grande despertamento”, extraído de Teresa de Ávila. Vida de oração: para quem deseja conhecer Deus na intimidade. Brasília, DF: Palavra, 2007. pp.274-276.]